IntroduçÃo À terra indígena (Ti) Rio das Cobras


com Florencio Rekayg Fernandes, entrevistado em 07 de abril de 2021



Florencio Rekayg Fernandes   A TI Rio das Cobras fica próximo a... ela é às margens da BR-277. Quem vem sentido Cascavel não tem como não passar aqui na TI de Rio das Cobras. Ele fica entre Guarapuava e Cascavel, que são as cidades maiores, são as cidades que fazem... depois tem outras menores, mas essas são as maiores que são as referências.

Aí tem duas, tem essa BR e tem a 158 que vai sentido até Dois Vizinhos, Francisco Beltrão, ali também que é outra BR. Essa corta 17km de extensão dentro da aldeia, enquanto que a 277 corta 15 a 16km, então ela é bem movimentada.

Ela é uma área de grande extensão, é a maior terra indígena do estado. Tem 19 mil hectares de terra. Historicamente ela foi bem maior, mas é o que consta agora, o que foi demarcado nos anos 70, essa quantia de tamanho. Ela tem uma população bem grande, por ser a maior TI do estado, ela tem uma população bem grande entre... tem as aldeias Guarani, Kanhgág e nós tivemos a Xetá também aqui umas épocas, que é a família do Tucanambá, do Coen Xetá, acho que vocês conhecem eles, a história dos Xetá também, que eu era vizinho aqui deles. Eles acabaram, com a morte do Tuca, acabaram saindo daqui e foram indo lá pra Marrecas e alguns deles pra aldeia Kakané-Porã, lá em Curitiba — que são as filhas do Tuca: o Zé, a Indiora a Indianara.

Aqui na verdade, a questão das lideranças, vai chegando na questão dos caciques, eles têm uma história que é tradicional a questão de passar o cacique, aquela geração em geração, pai passa pra filho. Até os anos 2000, por aí, eles estavam mantendo essa cultura aqui na TI de Rio das Cobras, aí eles começaram a... claro que daí a comunidade cresce, cresce o número também de pessoas que buscam conhecimento, as discussões, então já começa a ter uma comunidade que já tem aquela questão da discussão mesmo, da escolha e tal. A partir de 2000 pra cá eles começaram a fazer as escolhas dos caciques seguindo alguns critérios para poder assumir a função de cacique visto que, por ser a maior TI do estado, não poderia ser qualquer pessoa. Tinha que ser uma pessoa com uma certa experiência, com umas características. Nessa época eu participei das reuniões, e tinha que ter uma pessoa que conhecesse um pouco a parte jurídica, ele tinha que... modo de dizer, saber ler e escrever. Tanto que o último cacique, o seu José, ele só sabia escrever o nome, mas ele tinha uma experiência muito grande em termos de liderança. Ele herdou do cacique, ele acabou assumindo, ele era o vice e acabou assumindo de cacique. Então não teve manifestação, não teve discussão. A partir daí eles vêm fazendo eleições com votos. Maior de 18 e menor de 70 anos votam pra cacique, inclusive, já até passou o prazo da eleição do Cacique Angelo. Então agora eles vão começar com as reuniões, começar as discussões para ver qual o formato, até por conta da pandemia eles acabaram adiando, que era para o ano passado, agora eles vão tentar fazer esse ano. Então eles ainda estão aí na organização das reuniões pra poder fazer esse trabalho aqui dentro da aldeia.

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Só concluir aqui, nós temos onze aldeias aqui, e dessas, três são aldeias Guarani, então as outras são todas Kanhgág, só para vocês terem uma base. E aqui 80% é Kanhgág, então 20% seriam os Guaranis. Também, eles têm aldeias próprias, organização deles, cacique deles, mas assim, todas elas subordinadas ao Cacique-geral, que é o Cacique Angelo, que reside aqui na sede.

[...]


Brunno Douat   [...] Então é uma liderança geral pra TI de Rio das Cobras e daí tem essas subdivisões, com caciques específicos, para cada etnia que vive na TI ou é pra cada aldeia? Como que é a questão... se você imaginasse a vista dessa aldeia, seriam várias aldeias distantes umas das outras, com lideranças próprias?


FRF   Sim, nós temos as aldeias Guaranis, que eles têm toda uma organização, cultura, porque é outro povo, então eles têm também. Mas a escolha dos Caciques, das lideranças dessa comunidade, eles respondem ao Cacique-geral que é o Cacique Angelo. Claro que ele respeita a decisão deles, mas tudo passa pelo Cacique-geral. Então cada aldeia tem um cacique que responde por aquela aldeia, mas também é subordinado ao Cacique-geral. Ele toma algumas decisões, limitadas as decisões lá na aldeia, ele resolve vários casos na sua aldeia. Agora, casos graves, casos que requer uma atenção maior, ele passa pelo Cacique-geral que determina, ele que é a autoridade máxima aqui dentro.


BD   E trazendo assim, mais para uma questão... só para gente entender um pouco como que é a questão do espaço aí em Rio das Cobras: Essas aldeias elas são próximas entre si, elas são mais distantes? As aldeias Guaranis são um pouco mais distantes que as aldeias Kanhgág entre si? Como você descreve a construção dessas aldeias? Tem alguma que ainda tem construções tradicionais? São construções padronizadas?

Se eu entrasse na aldeia Kanhgág eu perceberia que ela é diferente da aldeia Guarani de alguma maneira?


FRF   Aqui você não percebe tanto agora, porque agora eles têm casas, mas se você prestar bem atenção, quando você chega a uma aldeia Guarani, você só vai identificar que é uma aldeia Guarani através da casa de reza, que é o Opy. A casa de reza é o símbolo do povo Guarani. Isso não tem como você não encontrar em uma aldeia Guarani. Mas fora isso, as casas deles são de alvenaria, essas casas da Cohapar, eles têm casa de madeira.

Teve uma época que as aldeias eram mais retiradas, elas eram mais no mato, mas distantes um pouquinho da cidade. Por conta das escolas, teve todo aquele processo de implantação das escolas dentro da aldeia, fez com que as famílias se aproximassem mais das escolas buscando conhecimento e também pela questão de necessidade mesmo, porque nós sabemos que hoje a caça e a pesca, é um pouquinho mais difícil para você sobreviver dessa técnica. Então, a escassez da produção... porque antes eles faziam pequenas roças, cultivavam seu milho, feijão. E hoje, com a juventude nas escolas, várias famílias acabaram saindo da parte assim mais (?). A terra era mais fértil... e vindo para os grandes centros, como se fosse, a gente fala “o êxodo rural para urbano”. Então tem todo esse processo também que as comunidades indígenas passam, por essa questão da implantação das escolas.

Então nós temos ainda algumas aldeias que ainda são distantes. Nós temos a aldeia Pinhal, que é Guarani. Ela dá quase 25km da BR... tudo estrada cascalhada, estrada de chão mesmo. E dos Kanhgág, a mais longe que nós temos é aqui a aldeia Campo do Dia, que dá 15km da sede. Então essas ainda são aldeias assim... mas assim, elas são aldeias distantes, mas são bem estruturadas: têm internet, têm escola, têm posto de saúde, têm umas casas boas. E a sobrevivência aqui da comunidade a maioria sobrevive de lavouras mecanizadas. Então isso também, a proximidade aqui das cidades contribui bastante porque eles têm que escoar os produtos para venda, para comercialização.

Já aproveitando a questão da comercialização, a questão do artesanato, que é muito produzido. Quem é de Curitiba percebe, quando há épocas de feriados prolongados, a gente percebe muito nas ruas de Curitiba, ali no Largo da Ordem, na XV, nos semáforos. Que a produção ela é muito grande aqui de artesanato. E como eles ficavam muito distantes da BR, até para você sair pegar um ônibus, ou fretar um carro para você levar artesanato, saía um pouquinho mais caro. Então as famílias acabam também ficando mais próximas desses meios para poder se deslocar para as cidades para poder comercializar o artesanato. Então tem muito essas questões que interferem na vida, no dia a dia. Claro, tem os pontos positivos e negativos dessa questão da proximidade, porque, aqui por conta da BR nós temos a questão dos acidentes, nós temos a questão do comércio, do consumo de bebida alcoólica... tem uma porcentagem muito alta, principalmente pelos jovens. Então tem a questão dos problemas, como qualquer outra comunidade, os problemas sociais. Mas tem sido uma questão que está sendo bem discutida aqui na aldeia. E já reforçando a questão da cultura, por essa questão da proximidade, da inserção da escola e de outros centros aqui dentro, a cultura acabou sendo um pouquinho esquecida, ela ficou um pouquinho distante. Algumas famílias, principalmente aquelas famílias que são mais retiradas, ainda mantêm forte a questão da cultura. A gente pode ver que as famílias que estão mais retiradas do centro, elas ainda mantêm bem forte a questão da cultura. Tanto as casas, a língua, a alimentação, o plantio, a gente percebe isso. As famílias que já estão mais próximas aqui do comércio das cidades, elas acabam utilizando os produtos que você consegue comprar nos mercados. Então a gente discute muito essa questão, também a minha pesquisa é sobre essa questão – a questão da cultura, dentro do âmbito escolar. Minha pesquisa de doutorado ela tem esse cunho, essa problemática para tentar explicar e tentar reforçar essa questão da cultura dentro do âmbito escolar, para que não se perca. Então aqui têm várias questões que a gente pode ir desenvolvendo durante a nossa conversa.


BD   [...] Você comentou que mais na região periférica, nessas aldeias mais distantes, eles têm estrutura, eles têm casas boas também. [...] O que você considera uma casa boa nesse sentido? E outra coisa que eu queria ver, que você comentou que essas aldeias mais periféricas, as aldeias mais afastadas do centro, elas terminam sendo um pouco mais tradicionais, ainda mantêm certas culturas, certos aspectos, certos hábitos. Isso influencia no espaço? Se eu for em uma aldeia mais na periferia, mais distante, eu vou ver uma diferença no espaço — em como vocês interagem com as casas, com a plantação —, diferente do que mais para as aldeias centrais?


FRF   É, as mais distantes, algumas famílias você percebe que elas... na verdade assim, eu trato elas como opção também, porque elas querem permanecer lá à distância, naquele espaço porque elas querem, é uma questão cultural. Ninguém vai obrigá-las a sair de lá e obrigá-las a vir mais próximas da cidade. Mas assim, quando a gente trata da questão da moradia, é aquela questão, aqui nós temos um cacique-geral, Cacique Angelo. Então os projetos que chegam pra aldeia ele atende e procura atender todas as aldeias aqui da TI. E nós temos aquelas famílias que foram contempladas, várias casas dessas de alvenaria. Nós sabemos que teve um impacto cultural nessa questão também, porque é cultural aqui a questão do fogo de chão... chão batido mesmo. E apesar deles terem casa assim de alvenaria, casas boas que a gente chama, dá um certo conforto para algumas famílias, mas eles ainda mantêm bem forte as casas de fogo de chão, que é um espaço mais familiar [...].


BD   Kanhgág ou Guarani também?


FRF   Kanhgág e Guarani também. Mas mais as Kanhgág. Andando aqui pelas casas, pelas aldeias que eu passei tanto Kanhgág e Guarani, eu percebi assim que os Kanhgág usam mais o fogo de chão. Pode tá lá com uma casinha bonita, de alvenaria, uma casa perfeita, bonita, mas tem que ter fogo de chão. Eu também estou pensando nessa questão porque uma roda seria o momento mais familiar, as rodas de conversa são os momentos mais família, momento de histórias, para dar risada, para ouvir os mais velhos. Então nós temos... o dia em que vocês vierem pra cá fazer a visita, eu vou levar vocês pra algumas famílias que ainda mantêm forte essa questão das casas. Aí eles têm lá as sementes de milho que eles conseguem na fumaça para poder plantar, têm as comidas típicas que eles fazem no fogo de chão, nas panelinhas de ferro. A minha mãe ainda mantém bem forte isso aqui e minha vó. Então o dia em que vocês vierem para cá, a gente pode selecionar essas famílias para gente passar uma noite, ou fazer uma conversa dentro dessas casinhas mesmo, para vocês sentirem o quanto é bom a gente ter esse espaço. Para gente fazer uma conversa também junto com essas famílias.


BD   [...] Você nasceu em Rio das Cobras? [...] Como a TI mudou desde que você era criança? A arquitetura mudou? As casas mudaram? A maneira como as casas se localizavam nas aldeias mudou? O que mudou? Gostaria de voltar mais no tempo para as origens suas ou até dos seus pais em Rio das Cobras.


FRF   [...] Eu sou natural dessa TI. Eu saí mais para estudar mesmo, mas isso faz 15 anos, que eu saí para estudar e acabei retornando para a aldeia em 2006, em busca de novos conhecimentos, novas experiências.

O censo ali é de 2010, e está três mil e pouco. Nós estimamos aqui, conversando com o cacique e nesses últimos anos acho que já passa de 4.000 indígenas. Cresceu bastante, e eu senti, percebi quando cheguei que teve várias mudanças, não só na questão da aparência, da estrutura, mas também em uma questão assim mais cultural. Eu senti assim que o pessoal aqui eles estão trabalhando mais com lavouras mecanizadas. Então dá um outro ar, quando você chega você não vê mais pequenas roças, que nem era antigamente quando eu morava aqui. Eu rocei muito com meu vô, saía no mato, caminhava buscar bambu, então tinha esse contato com a natureza. E eu senti que nos últimos anos o pessoal tem refletido muito sobre essas questões do contato com a natureza, com a floresta — o que ela oferece e o que a gente pode oferecer também para poder manter as nossas florestas aqui. E o pessoal tá investindo muito em lavouras, que é uma coisa bem complicada, que a gente tem nosso ponto de vista, mas é o modo de sobrevivência deles aqui. Porque a grande problemática aqui é a questão da falta de... aqui tem mão-de-obra, mas tem a falta de trabalho, a falta de emprego, tem vários jovens ociosos aqui, que a gente percebe que eles não têm o que fazer. Falta isso, falta espaços culturais. Tem espaços esportivos, mas ainda é bem [inint.]. Eles praticam esportes, mas ainda não é isso que a comunidade deseja. Tanto que, quando a gente vem pra cá, a gente vê bastante jovem. Eles terminam o ensino médio e nem todos querem ir para uma universidade, nem todos querem mestrado e doutorado. Querem algo que eles possam ficar aqui na aldeia. E nós sabemos que para você estudar fora é bem complicado e difícil para quem se criou aqui na aldeia. Então a gente percebe, não só a questão da aparência, da estrutura, mas também a questão das lideranças, muda um pouco a visão deles também sobre os acontecimentos que eles vêm sofrendo aqui na aldeia. Então tudo muda, mas assim, aqui ainda, apesar de todas essas mudanças, eles ainda mantêm bem forte a língua. Então isso que é o forte da TI do Rio das Cobras, é a língua. Aqui 100% falam na língua indígena, o que nós temos que procurar agora fazer é com que essa língua seja mais visível aqui na aldeia, que as pessoas possam escrever mais na língua. Eu percebo assim que a gente só fala, mas não tem... a falta de material nas escolas. Porque nós somos 6 colégios indígenas aqui dentro e eu visitando as escolas, a dificuldade maior é nessa questão do material pedagógico mesmo, principalmente sobre a terra de Rio das Cobras. Nós temos pouco material. Conversando com a Josi, pra ver o que ela tem sobre Rio das Cobras no Museu, a gente percebe que Rio das Cobras tem bem pouco. Mangueirinha tem vários materiais, vários documentários que a gente poderia estar se aprofundando, mas Rio das Cobras tem bem pouco, e deveria ter mais material por conta que é a maior TI do estado.


Ele tem uma história também de retomada, ele tem uma história. Conversando com o professor Lúcio Tadeu Mota, ele fala um pouco dessa questão da retomada aqui, da expulsão dos fazendeiros aqui da TI Rio das Cobras naquele livro As guerras dos [índios] Kanhgág. Quem puder ler aquele livro, é muito bom. Ali ele trata de 1923 até 2007 [...]. Mas esse livro é mais histórico, antropológico. Ele é um material muito bom que eu li já 3 vezes até para eu poder entender um pouco também, porque a própria antropologia fez com que eu buscasse mais esses materiais. Então eu sempre falo que meu ingresso no doutorado, principalmente na antropologia, ela tem me ajudado bastante e eu já retornei para aldeia com uma outra mentalidade, com essa vontade de fazer alguma coisa pelo meu povo aqui de Rio das Cobras. Porque, por mais que é a maior TI do estado, mas ainda tem essas problemáticas, essas dificuldades aqui. É o próprio sistema, de saúde, educação, agricultura. É o próprio sistema, eles vêm aceitando assim e às vezes acaba ajudando, mas ao mesmo tempo ela traz também mais consequências por trás. Então a gente tem discutido isso, eu tenho levado isso na discussão das lideranças aqui da TI Rio das Cobras para que a gente possa fazer um trabalho que dê visibilidade para TI Rio das Cobras, porque aqui... se você colocar no Youtube, Facebook, Rio das Cobras você só vai ver coisa ruim, saque, acidente, alcoolismo. Você nunca vai ver o lado bom. Porque aqui eles têm lugares bonitos que deveriam ser mais explorados — digo a parte mais turística. Nós temos cachoeiras, nós temos cânions, temos uma vasta floresta que está intacta ainda, que a gente precisava retomar isso com os jovens, até com alguns pesquisadores para que a gente possa divulgar esse trabalho. O cacique tem me dado todo o apoio para que eu possa fazer esse trabalho de divulgar a TI Rio das Cobras. Inclusive esse nosso trabalho já vai ser um que vai fazer essa conexão com Rio das Cobras e com o mundo, a gente tem que pensar nesse sentido.


Ingrid Schmaedecke   [...]Eu queria entender um pouquinho se essa questão das casas boas, de alvenaria, isso foi uma coisa que foi sendo implementado ao longo do tempo? Teve algum momento que... que nem você comentou, que em algumas dessas casas as pessoas ainda não têm o fogo de chão, que é uma coisa super cultural, super intrínseca tanto dos Kanhgág como dos Guarani. Mas houve outros momentos que teve essa interseção de tradição da aldeia com esses tipos de morar diferentes? [...] Pensando nisso como uma evolução, quando foi a primeira vez que teve esse contato com essas casas de alvenaria?


BD   Na sua infância já tinha essas casas de alvenaria? Você nasceu e cresceu numa casa de alvenaria?


FRF   Não. [...] Eu cresci em casa de madeira mesmo, fogo de chão. Na verdade, não só Rei das Cobras, mas todas as TI que a gente foi visitar, que são terras já demarcadas há mais tempo, você já vê essas casas porque é um projeto estadual, que são as casas da Cohapar, mas ele só teve 3 etapas só e contempla algumas famílias. Então não foram todas as famílias que foram contempladas. Então as lideranças tentaram atender aquelas famílias que viviam em moradias bem precárias mesmo, porque com a questão da organização da saúde indígena — que antes era mantida pela Funai, depois passou para o SESAI — aí teve alguns problemas de saúde em relação a pulmão, doenças pulmonares que eles alegavam que era decorrência das casas que não eram boas, passavam frio, até mesmo a própria fumaça das fogueiras acabava causando, principalmente doenças tipo bronquite, essas outras doenças. Mas ela teve uma fase só e depois ela parou. Algumas famílias buscaram outras alternativas para você fazer as moradias. Eu me criei numa casa de madeira e só agora, depois de ter uma família, que eu comecei a morar em uma casa de alvenaria. A maioria das casas que eu morei em algumas aldeias que eu passei foi de madeira. Aqui na aldeia, a maioria das famílias que não foram contempladas acabaram fazendo casas de madeira mesmo, de tábua. Então você percebe isso, mas eles mantendo também essa questão da tradição do fogo de chão. Claro, a estrutura é melhor, mais condições... até porque tem a questão do custo também. [...] Por mais que tem as madeiras aqui eles têm que serrar, tem toda uma... mas assim, a gente percebe que algumas famílias tem ainda... algumas famílias Kanhgág, que não tem ainda as condições financeiras de fazer uma casa mais ou menos, e muitas vezes as lideranças não tem condições de atender aquela família, eles acabam vivendo mesmo em uma casa de chão. Tem algumas famílias que ainda vivem com casas feitas de pau-a-pique aqui. E no (?) da pandemia a gente fica mais por casa, mas tem casas que eu posso ir lá tirar algumas fotos. E pensando agora no nosso projeto, a gente pode fazer uma sessão de fotos dessas casas que nós temos e mostrar um pouco essa evolução das casas. Tem casa de madeira, tem casa pré-moldado, tem casas da Cohapar e tem a última etapa que são as mais bonitas, com janela de vidro fumê, são umas casinhas mais bonitinhas que algumas famílias foram contempladas aqui. O cacique procura entender as famílias que realmente precisam de uma moradia, tanto Guarani e Kanhgág. Então aqui precisariam de mais casas. Teve uma mudança, claro, se a gente puder retomar aquela vida [inint.]. Tem toda essa evolução da moradia, mas tem essa evolução pessoal, evolução das pessoas também em relação a isso. Mas a gente percebe que...  [...] algumas casas, por mais humildes que sejam aquelas famílias, principalmente algumas na aldeia Pinhal, Guarani, você vê uma antena da Sky. É interessante, a casa tá lá, em pau-a-pique, às vezes de madeira, fogo de chão, mas às vezes para ficar conectado, a gente vê casas com antena de internet via satélite, você vai ver antenas da Sky, você vai ver bastante antenas de internet nas casas. Por mais humilde que elas sejam, elas buscam também ficar antenadas, a ter acesso ao conhecimento também, por conta mais da juventude. Os mais velhos a gente percebe que eles ficam mais no fogo de chão, tomando chimarrão.

Mas ainda vocês vão ter a oportunidade de vir para cá e ficar uns dias aqui em Rio das Cobras e a gente vai poder andas nas aldeias. Não digo... para andar nas 11 aldeias a gente teria que ir... 2 dias para a gente ir em todas [...]. São aldeias pequenas, tem algumas mais longe, mas são todas de fácil acesso, a gente vai tranquilo de carro.

[...]


Josiéli Spenassatto   Florencio, dá pra dizer que essas casinhas tradicionais, [...] as casinhas de fogo de chão, elas funcionam como cozinhas?


FRF   Sim, funciona. As casas que tem... as casas de alvenaria, elas têm pia, fogão a gás, tudo lá dentro, mas o fogo de chão é mais para tomar chimarrão, assar uma carne, sapecar o milho, assar uma mandioca, uma batata. O dia em que o Renato, do Museu Paranaense, quando ele veio para cá fazer essa visita aqui na aldeia de Rio das Cobras comigo, nós viemos para acompanhar a romaria aqui da aldeia, para que a gente pudesse levar lá para o Museu Paranaense, as mulheres convidaram — e geralmente são as mulheres que ficam no fogo de chão, os homens ficam um pouquinho mais retirados, geralmente são as mulheres — o Renato para sentar ali e comer a carne com mandioca assada. Então ele achou bem interessante. Seria assim, na linguagem não-indígena o momento fofoca [...]. Elas dão risada, conversam, falam dos homens, falam do que aconteceu. Então seria o momento para você ficar sabendo o que acontece na aldeia. [...] Tem o momento dos homens também, as mulheres ficam mais para trás, é como se tivesse um círculo. Na hora dos homens, os homens ficam em um círculo no meio, na hora das mulheres os homens ficam um pouco mais retraídos, mais para trás, ficam conversando, mas eles não fazem mais parte daquele ambiente. Isso estou escrevendo na minha tese... vocês vão aprender muito dessas questões e eu estou escrevendo, estilo Kanhgág, para ver o que eu percebo, o que eu vivencio, o dia a dia aqui na aldeia e o que eu passeei. Porque o meu material de pesquisa seria mais voltado para que chegue nas escolas da educação básica, para que chegue para as crianças aí da cidade, para que cheguem para as escolas indígenas para que eles possam conhecer o dia a dia, como que é o povo Kanhgág. A gente não vê isso nos materiais e isso é minha grande preocupação. E esse nosso material aqui sobre arquitetura indígena vai ser muito bom também se a gente fizesse com que chegasse nas escolas indígenas, não só Rio das Cobras, mas também as outras do Paraná. Nós temos 40 escolas e a maioria delas são Kanhgág. [...] Quando eu morava aqui, que não era ainda acadêmico, não era pesquisador, eu percebi isso, mas a gente não tinha aquele interesse de pesquisador de registrar. Era o momento, agora que começo a analisar, começo a escrever. Eu percebo assim que a minha bagagem é bem grande, mas eu preciso registrar. [...]


BD   [...] Qual que seria a casa tradicional Kanhgág? Eu entendo que a questão do fogo de chão é super marcante, mas você mencionou a casa de pau-a-pique, a casa de madeira... tirando a questão da casa subterrânea, que vai muito atrás [...], como você definiria a casa tradicional Kanhgág? Como que é a cobertura? Como que é a construção? A sua casa era de madeira, mas como era a cobertura dela? Eu lembro que você comentou uma vez com a gente que algum mais antigo aí de Rio das Cobras comentou com você que tal pessoa não ia mais conseguir fazer as casas tradicionais porque tem toda a palha para tirar da vegetação, para fazer a parte da construção. Era para cobertura? Como que você descreve a casa tradicional e o processo de construção da casa tradicional Kanhgág?


FRF   Então, nós temos a questão da casa subterrânea que é muito distante para nós daqui. Aqui em Rio das Cobras eles conhecem quase nada sobre essa questão das casas subterrâneas. Então o material que eu tenho trazido e mostrado, para eles ainda é desconhecido, então eles... as casas que moravam seria essas casas feitas com madeira tiradas, tipo lascas — a gente chama de lascas — onde não tinha... elas eram todas amarradas umas nas outras e umas em cima das outras. O dia em que a gente se encontrar eu posso fazer um desenho para vocês de como a minha vó contou pra mim de como que é feita. Acho que algumas fotos eu vi essas casas. Elas eram inclinadas, não eram redondas, as Kanhgág não eram casas redondas, meio inclinadinhas em V. Todas elas cercadas, ou pau-a-pique ou a mesma madeira que é tirada a base de madeira mesmo. Instrumentos bem rústicos e [inint.], o meu interesse é tentar mostrar como eles tiravam essas lascas, e tem pessoas que ainda — os mais velhos que ainda moram aqui — podem demonstrar para nós como que eram tiradas antigamente. [...] Se a gente conseguisse construir o modelo. Dá para construir sim, com uma madeira, com o formato dela como que era, e tem essa opção das lascas e a opção das folhas de jerivá. Tem todo um processo de costura, as folhas do coqueiro também [...], aí tem todo uma questão de trançado também. Só que a questão das folhas de jerivá é que ele tem prazo, ele vence, ele seca. O perigo de queimar uma casa é bem maior do que fizessem de madeiras lascadas, porque ele seca. Mas ele bem construído protege bastante da chuva e tal, mas ele tem um prazo também, ele vence, ele seca, então praticamente eles têm que ficar trocando quase todo ano, dependendo da construção leva até dois anos. Então tem todo esse conhecimento também pra você poder colocar na construção.

E pau-a-pique, esse é mais fácil de fazer porque são... fiz com os Guarani lá no litoral. Em Morretes nós fizemos, aprendi a fazer casa de barro com eles lá. Então eles também usaram as mesmas técnicas, pau-a-pique, mas os Kanhgág não usam barro, então eles deixam bem enfileiradinhas as casinhas de pau-a-pique e madeira. Claro que tem todo um esquema, todo um conhecimento, porque você não pode tirar madeira grossa, uma fina, depois uma mais fina, uma mais grossa. Tem todo um conhecimento de tamanhos. Tem que seguir todas essas regras para fazer uma casa bonitinha, dentro das normas dos mais velhos de como eles construíam. Mas a gente pode ir discutindo essa questão, a gente fazer réplicas, nem que seja réplicas do estilo, aqueles que fazem com isopor [...], uns modelos em miniatura para que a gente possa contribuir com as crianças, ou deixar isso no museu [...]. Maquete, a gente poderia pensar nisso também, não sei se convém colocar isso no cronograma.


BD   Esse é um projeto que vai evoluindo. Esse primeiro ano desse projeto é todo esse levantamento, toda essa pesquisa, juntar todo esse material, esse conhecimento. Mas com certeza, a partir do ano que vem... vai ser gerar mais material com isso que a gente construir, levantar. Então a ideia é fazer maquete, protótipo, fazer testes dessas construções, fazer simulações. Até com a Universidade Federal aqui, com o pessoal da construção mesmo, da engenharia, dá para buscar parcerias para fazer simulações, irem até aí. Eu acho que isso é super importante.

Nessa etapa, uma coisa que seria muito legal... isso são coisas importantes para você... até pra você elencar quem você vai entrevistar, então, por exemplo, sua vó com certeza é incrível de entrevistar ela. A gente pode disponibilizar papel e caneta para rabiscar como as casas eram, a aldeia era redonda, era em V, o que tinha no meio, em cada lugar. E essas pessoas que você comentou que tem a questão técnica, de saber ainda como é que elas faziam essas casas lascadas, esse trançado com a folha do jerivá. Entrevistar essas pessoas seria super legal para justamente... na língua Kanhgág, na língua tradicional de vocês para ter esse conhecimento registrado da arquitetura e construção na língua tradicional.



FRF   Depois a gente só vai ter o trabalho de traduzir, mas isso eu faço, é bem tranquilo. Que aí até no Kanhgág, as pessoas que eu vou entrevistar, a maioria fala Kanhgág, todos eles falam Kanhgág [...], então Kanhgág eles ficam mais à vontade também. Português eles iam ter mais dificuldade. Mas aquele estilo que eu fiz pro Museu, com a minha tia Joana sobre artesanato tradicional, ficou muito bom. Foi bem simples, bem tranquilo para fazer com ela — ela se sentiu muito à vontade —, aí eu penso que com outros também... poder fazer o mesmo processo. Eu já vou conversando com algumas pessoas, já convidei algumas, pra gente poder... eles ficam muito à vontade... (?)


IS Outra pergunta que eu fiquei pensando, essa questão dos materiais... das folhas de jerivá, nessa questão desse prazo de validade, que a madeira se comporta de um jeito diferente. Esses materiais, eu imagino que cada um deles tenha uma estética diferente uma da outra, que essas construções são diferentes umas das outras. Mesmo se fossem no mesmo formato, têm uma textura diferente, cores diferentes eu imagino — conforme o tempo vai passando e a folha seca [...]

[...] Como os materiais, eles têm essa estética diferente entre eles, eu queria também saber se isso é uma coisa importante — do ponto de vista estético mesmo —, se nessas casas, construções, tinha algum tipo de enfeite, ornamento, padrões, alguma coisa que seja relevante.


FRF   Como (?) familiar, geralmente ali tinha — falando do Kanhgág — geralmente lá ficam as sementes, que é para preservar, para plantio, os instrumentos de caça, arco e flecha, os instrumentos de trabalho mesmo, tipo cestas... espiga de milho, o próprio feijão para ser batido no próximo dia. Então eles acabavam colocando isso tudo no mesmo espaço para poder preservar. Porque era uma casa, além dos espaços para dormir. Eles eram bem humildes, bem tradicional. Ainda tem algumas casas que eles fazem mais quando eles vão fazer as roças no meio do mato. É como se fossem cabanas, para você passar o dia. Eu posso até ver isso também. Meu tio fez uma, seria mais para proteção mesmo, mas como a gente está falando de moradas... [...]. Tem a questão que ele tem um prazo, a folha do jerivá — eles já se preparavam para a família se preparar — aí tem toda aquela questão do jerivá, não pode ser um jerivá antigo, tem que ser um bem novo para poder manter mais. Então tem todo esse conhecimento do processo, do ano, das folhas de jerivá. Se pegar um jerivá já antigo, a duração dele vai ser bem menor. Se você pegar folhas novas, a duração máxima vai ser 2 anos, pelo que eles me passaram. Então tem todo esse conhecimento que eles detêm também, os mais velhos, sobre essa questão. 


BD   E as coberturas, Florencio? Como é que eram dessas construções? Tanto a de madeira tirada, de lascas, quanto a de folha de jerivá, é a mesma cobertura?


FRF   A mesma cobertura. Na verdade, o jerivá é mais para cobertura. Tem umas famílias que usavam também para as paredes. Então tem essa questão também porque ele é trançado. Muitos colocavam pau-a-pique, mas também colocavam por cima as folhas de jerivá para poder proteger do vento. A cobertura, e depois faziam o pau-a-pique, mas também colocavam as folhas de jerivá em volta para proteger do vento.

E a mesma coisa com as madeiras lascadas, tanto cobertura e paredes. Claro, a de madeira, a durabilidade dela é bem maior, protegia mais, tem toda essa questão.


BD   Então quando você fala de madeira lascada e de jerivá, você está falando mais sobre a cobertura do que sobre as paredes? Porque as paredes tradicionalmente são de pau-a-pique?


FRF   Pau-a-pique. Tem algumas casas que são os dois casos, podem usar tanto de madeira lascada... aí depende muito da produção da madeira lascada [...]


BD   Mas ela é mais revestimento?


FRF   Sim, ela é mais para revestir e proteger do vento. Depende do local onde você vai construir, você usava mais materiais para proteger do vento. Você faz uma casa maior, pega mais vento, já no baixo você já consegue usar só pau-a-pique e já protege. [...]


BD   E tinha algum pilar central nessas casas? Tinha alguma estrutura central? O telhado tinha alguma abertura para sair a fumaça da fogueira?


FRF   As de madeira tinham uma cobertura mínima em cima para sair a fumaça. Então as de madeira faziam essa questão de sair a... ou às vezes, na frente da casa, porque ali vai ter aquela parte do triângulo da casa lá em cima, eles deixavam aberto para sair a fumaça. Ou faziam grades com bambu, com um trançado mais aberto para que pudesse sair a fumaça, dependendo... ou faziam dos dois lados ou faziam de um lado só para sair a fumaça. Então eles têm todo esse conhecimento também de trançado do bambu lá em cima para fechar, mas para que tenham essas aberturas para sair a fumaça.

A de madeira também, eles deixam umas frestinhas na frente da casa para sair a fumaça, ou em cima, faz uma abertura, faz uma outra mini cobertura para poder sair a fumaça no cantinho. Isso que eu ainda cheguei a ver, essas casas em Rio das Cobras. Isso nos meus 10, 11 anos eu ainda... acompanhei essas casas. [...]


IS   [...] Essas construções, cada uma era como se fosse uma casa, digamos uma família? E cada uma delas tinha esse espaço de dormir, espaço do fogo de chão? Ou tinha, por exemplo, uma construção que tinha fogo de chão comunitário? Enfim, como que se organizavam essas construções, e a vida também?


FRF   Eram familiares... era onde moravam. Tinha cama, as panelas, tinha o fogo de chão, porque essas famílias ainda não tinham essas casas de alvenaria então ali era a morada deles. Às vezes, se um filho, uma filha casasse, aí a família já construía outra casa. Geralmente era próxima uma das outras, então acabava virando... aquela família já construía outra casa, e assim ia aumentando. Mas geralmente é fogo e o lugar de dormir era tudo ali em volta do fogo, dentro dessa casinha. Aí depende da quantidade da família, era o tamanho da casa. Se era uma família com casal, com 2 ou 3 filhos, era menor. Era uma família que morasse genro, a nora junto, umas 8 pessoas, a casa tinha que ser maior.


BD   [...] Eu queria ouvir mais de você, Florencio, uma questão que também me interessa muito e acho que pode se relacionar com a nossa pesquisa, toda a questão do imaterial também, que é a questão mais da espiritualidade, da cosmologia Kanhgág. [...] Como que essa espiritualidade tradicional Kanhgág... ela tem alguma ideia de espacialidade? Tem alguma relação com a forma da aldeia, com o fato da casa ser em triângulo? E até questões mais gerais, se você puder falar sobre a tradição espiritual Kanhgág. Até se existe questões xamânicas na cultura Kanhgág também ou não. [...]


FRF   Nós temos a questão do Kamé, Kairu, que são as marcas dos Kanhgág, inclusive as casas eram construídas dessa forma. O Kamé são as marcas listradas, que são os (?), os raios do sol, os guerreiros que são os Kamé. Geralmente a casa era... para receber, a casa, a porta  tinha que ser do lado onde o sol nasce. Tem toda essa questão de leste-oeste. Tem toda essa questão de pôr-do-sol e nascer do sol. A porta tinha que estar virada para o sol, receber a luz. Tem toda essa questão que os kuiã falavam para nós na hora de construir as casas. Mas aqui a gente já percebe que o pessoal quase não utiliza muito essa técnica para construir as casas. Eu, por um acidente, acabei construindo minha casa para o lado certo, a porta do lado onde o sol nasce — então ele se põe atrás. Então os primeiros raios solares era o que traz a luz ali para a casa. E até para iluminar a casa, porque aí de manhã pega a luz ali, é o momento em que o pessoal se prepara para ir trabalhar, para ir para as roças, para poder cozinhar. Então como eles não tinham luz elétrica, eles contavam com essa luz do sol, do lado do Kamé-Kairu.

As famílias Kairu também colocavam as portas viradas para onde o sol nasce. E os Kuiãs, eles explicam bem melhor essa questão. Mas tem toda essa questão do Kamé e Kairu que são as marcas que nós utilizamos em nossos rituais, para as festas. [...]


BD   [...] Essa questão do Kamé e Kairu é uma distinção entre grupos?


FRF   Na verdade, são famílias. As duas grandes famílias que compõem o povo. Aí tem outras duas marcas também, mas essas outras duas marcas vieram depois. Kamé seriam as famílias... que daí vem de geração, de pai para filho. Se meu pai é Kamé, eu sou Kamé. [...]

São linhagens. Tem alguns casos que trazem como clãs, famílias. Duas grandes famílias do povo Kanhgág, Kamé e Kairu. Até para dar uma divisão para não dar casamento entre parentes. A divisão serve para isso, ela seria a parte bem importante para não dar casamento entre primos, entre parentes próximos. Os mais velhos colocam que pode trazer um mau presságio para a família, ou o casal não se acerta, dá muita briga, traz maus espíritos nas famílias. Então tem toda essa questão cosmológica que tá naquele livrinho azul que eu fiz sobre Eg jykre sinvi... que o próprio Telêmaco Borba coloca muito naquele livro dele: Atualidade Indígena, tem muito dessa questão da cosmologia Kanhgág. O mito de origem do povo Kanhgág também ele vem do Kamé e Kairu, de onde vieram os Kanhgág.

Essa é uma questão que o pessoal aqui também não tem mais praticado, isso é uma briga nossa também. Hoje, com a tecnologia chegando nas aldeias, é Kairu com Kairu, Kamé com Kamé, e muitas vezes essa questão da falta de material e a falta de conhecimento dos próprios jovens, que muitas vezes os pais acabam não passando isso para os filhos.


BD   Você consegue nos passar essa bibliografia da questão mais cosmológica? Que é bem do nosso interesse para costurar com a arquitetura, com a questão imaterial. [...]

FRF   A Josi ou eu, a gente pode passar para vocês os materiais que nós temos. [...] Eu posso até colocar no grupo esses materiais. E a própria Gerassi da Veiga, da USP, que fez um trabalho bem legal, que a tese de doutorado dela, ela também fala sobre essa questão. E tem alguns vídeos, o próprio ritual do kiki [...] eu posso ir compartilhando com o grupo para vocês irem dando uma olhada.