A Dimensão Imaterial do Habitar e Construir Indígenas



Do Objeto

A constituição dos assentamentos indígenas e a construção de suas arquiteturas envolve mais do que a materialização física do espaço: os ritos de coleta, a distribuição de tarefas, a manufatura, o habitar do dia-a-dia e as cerimônias de montagem, ornamentação, de bênção e de abandono representam, entre outros aspectos, uma dimensão imaterial do fazer arquitetônico. Embora os processos de acervamento tenham implicado no silenciamento de uma delas, essas “dimensões” não são separáveis na prática. Material e imaterial são noções do repertório de significados de muitas sociedades hegemônicas, mas nem nelas e muito menos em grupos marcados por outras epistemologias, fazem muito sentido.

Reconhecendo a existência de uma conexão pujante dos povos ameríndios com o ambiente vivido, que envolve o manejo de diversas unidades de recursos de origem vegetal, animal e mineral, e, considerando a forte espiritualidade que o contato profundo entre esses coletivos e seus territórios produz, intencionamos descobrir as narrativas indígenas específicas e evidenciá-las, a propósito desse seu mundo altamente animado, e no que diz respeito aos seus processos de construir e de habitar estruturas.

O objeto resultante dessas intenções foi a documentação sonora, em forma de áudios, e textual, transcrições e análises sócio-arquitetônicas, de relatos de representantes indígenas dos povos Xetá, Kanhgág e Guarani (nas línguas nativas e/ou em português). Esses relatos envolvem lembranças, percepções e sentimentos diversos sobre as estruturas construtivas que eram realizadas no passado, sobre como os tempos de hoje se caracterizam por outras formas de construir e de habitar, sobre como o aspecto construtivo é uma característica fundamental do patrimônio cultural de cada povo indígena, sobre como essas estruturas se diferenciam, contrastam ou se aproximam ao longo de diferentes tempos históricos e/ou localidades, sobre as preferências individuais de construção empregadas por diferentes sujeitos, sobre as dificuldades de coleta e sobre o exaurimento de certas matérias-primas, sobre os programas habitacionais promovidos por diferentes governos, e assim vai, é uma lista longa de afetações que as imagens provocaram e que nós jamais imaginávamos o alcance.
O objeto deste projeto é completamente inédito e reflete a profundidade do trabalho realizado, do processo e das relações humanas travadas a partir dele. Temos consciência do quanto este patrimônio imaterial dos relatos indígenas são parte de um legado que deve ser difundido, por isso incentivamos a sua consulta enquanto material paradidático voltado a professores indígenas e não indígenas, como fonte de pesquisa acadêmica, como inspiração para outros projetos preocupados com os mesmos princípios de análise socioarquitetônica, e também - porque não!? - como exemplo de condução de trabalho de maneira colaborativa entre pesquisadores não indígenas e indígenas.

Acervos

Somente conseguimos chegar nesses resultados com a potente parceria com o Museu Paranaense, que atuou conosco nas atividades de acesso às fotografias e filmes representando os Xetá, Kanhgág e Guarani de seu acervo, e também se envolveu nas discussões e impasses do projeto.

O museu é um dos lados desse encontro, porque se caracteriza como um dos mais importantes patrimônios culturais da memória indígena do Brasil. Instituição fundada em 1876, uma das mais antigas do país, este museu histórico-antropológico atravessou épocas e um dos atravessamentos mais contundentes foi o da história indígena. Somente a respeito dos povos Xetá, Kanhgág e Guarani, são mais de mil fotografias e filmes. Fez-se uma seleção desse volume enorme objetivando aqueles itens que melhor pudessem propiciar as narrativas indígenas envolvendo construções e formas de habitar dos três povos. São acervos incríveis que têm o potencial de fomentar muita conversa.

São imagens de diferentes épocas, que vão do início do século XX até os anos 1980. Pertencem a diferentes coleções, como as fotografias dos Xetá, sendo todas da coleção que leva o nome do pesquisador e documentarista tcheco Vladimir Kozák, feitas nos anos 1950 na mata da Serra dos Dourados, região noroeste do Paraná.

As fotografias dos Kanhgág pertencem à coleção que leva o nome da pesquisadora e colecionadora austríaca Wanda Hanke, feitas no então Posto Indígena Faxinal nos anos 1950, também à coleção Ivan Bueno/Jacó Cesar Piccoli/Carlos Ruggi realizadas no então Posto Indígena Mangueirinha nos anos 1980, e imagens mais antigas - provavelmente do início do século XX até a década de 1930 - que aparecem com autoria desconhecida e sem data, contando apenas com a informação de localidade (como São Jerônimo, Ivaí, Toldo das Lontras).

As fotografias e filmes dos Guarani também pertencem  à coleção Wanda Hanke (da região de Dourados), à coleção Ivan Bueno e Carlos Ruggi (anos 1980, também em Mangueirinha), assim como à coleção Mauro Giller, cujas fotografias foram feitas na Terra Indígena Ilha da Cotinga em 1989, e por fim à coleção Vladimir Kozák, que retratou um acampamento Guarani-Kaiowá às margens do rio Ivinhema em 1948.


interlocutores

Os sujeitos detentores dos saberes sobre essas representações imagéticas, colaboradores diretos do projeto, foram pessoas com diferentes graus de proximidade com o MUPA, o que significa dizer que têm diferentes modalidades de relações com os acervos que este museu preserva. No entanto, comum a todos os colaboradores, é o fato de estarem, pela primeira vez, parando para pensar a respeito dos aspectos construtivos e de habitação desses espaços.

Um dos antropólogos do projeto e também um dos entrevistados, Florêncio Rekayg Fernandes, é Kanhgág da Terra indígena Rio das Cobras, no sudoeste do Paraná, e já vinha de uma série de encontros e inclusive colaborações com o MUPA, como o Curso de Introdução à Língua e à Cultura Kanhgág, por ele ministrado, em 2019. Florêncio também abriu um braço importante do projeto ao mediar entrevistas com anciãos Kanhgág que tinham muitas histórias a propósito das imagens, como a artesã e curadora natural, Judite Sygso Fernandes, e o kujá, benzedeiro e artesão Antonio Sorá Felipe.

Os Xetá, representados pelos caciques e irmãos Dival e Claudemir da Silva da Terra Indígena São Jerônimo, tem uma ligação profunda, inviolável e antiga com estas fotografias e outros acervos, porque heranças diretas de seus antepassados e também documentos jurídicos que atestam a sua história e a sua existência. De um trágico genocídio perpetrado sobretudo nos anos 1950 no noroeste do Paraná, sobreviveram apenas oito indivíduos Xetá. Um deles, Tikuein, pai dos nossos interlocutores, foi uma referência desse povo pelo direito de existirem e de serem reconhecidos, e nesse sentido, de poderem acessar direitos sociais e culturais básicos. Dival e Claudemir cresceram em meio a essas batalhas e nelas fizeram também suas moradas, desde antes do falecimento de Tikuein. Infelizmente, a morosidade no processo judicial de conquista de uma terra que possam chamar de sua é um punhal cravado no peito Xetá que vai se estendendo a gerações. A relação com o acervo, portanto, além de afetiva, é uma forma de defesa da sua própria vida e da reprodução enquanto grupo.

Elias Fernandes Cordeiro é professor da língua Guarani na Aldeia Urbana Kakané Porã em Curitiba. Ele é um entusiasta dos assuntos da cultura e da vivência de seu povo. Seus avós sempre viveram na mata, na vida tradicional das aldeias, e lhes contaram muitas histórias. Como não sabiam escrever nem ler, porque sua cultura não operava dessa maneira, as histórias eram contadas de geração a geração. E foi nesse sentido que


metoDologia 

Com o recrudescimento dos efeitos da pandemia no início de 2021, nos meses iniciais das atividades do projeto, tivemos que repensar ações e também respeitar tempos não previstos.

O acesso ao acervo do Museu Paranaense, inicialmente fechado em função da pandemia, e às aldeias, fechadas para visitas externas em razão da necessidade de isolamento social das comunidades, foram restrições que acarretaram no alargamento dos tempos de ação do projeto. Também nos vimos enfraquecidos pela contaminação por covid-19 de integrantes da equipe, e tudo isso dificultou perceber e entender que o projeto deveria caminhar apesar das incertezas do contexto de plena ascensão da pandemia.

Em quase sua totalidade os trabalhos do projeto, idealizado inicialmente para ocorrer a partir de encontros presenciais, tanto da equipe entre si quanto nas ocasiões de entrevistas com indígenas nas aldeias, tiveram de ser adequados para o formato virtual. Sua base foram os encontros semanais entre a equipe, seguindo pautas específicas e etapas diversas através de aplicativo de videoconferência.

Um aspecto que não foi remoto, envolve as entrevistas com anciãos da Terra Indígena Rio das Cobras. O antropólogo Kanhgág da equipe, Florêncio Rekayg Fernandes, além de ser um dos entrevistados, em razão do profundo conhecimento e do interesse por matérias da própria cultura, foi o mediador de outras entrevistas na terra indígena referida. Sendo morador do local, e entendendo as condições de segurança necessárias aos procedimentos, Florêncio realizou entrevistas presenciais com os anciãos supracitados, Judite e Antonio, conduzidas na língua indígena. Estas entrevistas foram gravadas por meio de aplicativos de gravação de áudio.

Os diálogos com os representantes ou referências, como nós decidimos nominá-los, Florêncio, Dival, Claudemir e Elias, ocorreram remotamente e foram gravadas em aplicativos de videoconferência.

Embora estes representantes indígenas tivessem acesso à internet, a maioria deles opera por meio de aparelhos telefônicos, celulares, algo que dificultava a visualização das imagens do acervo em tempo real durante as entrevistas por videoconferência. Esta dificuldade acabou impulsionando a decisão da impressão e envio prévio das reproduções fotográficas, que se mostrou fundamental não somente para a operacionalização dos encontros onde os indígenas tinham em mãos as imagens e podiam manipulá-las, mas como uma espécie de material de estudo, porque permitia aos indígenas pensarem com as fotografias antes de realizarmos os encontros, e ficando em sua posse posteriormente a eles.

No processo, a equipe também constatou a necessidade de apreender visualmente, na forma de mapas, os espaços habitados pelos comentadores/entrevistados indígenas hoje, compreendendo a inseparabilidade da reprodução da vida e das tradições indígenas e o território sobre o qual ela ocorre.

Os mapas então foram desenvolvidos a partir de uma metodologia colaborativa em que,  a partir de encontros virtuais com os representantes citados, buscamos representar partes do território indígena do ponto de vista dos relatos de quem os habita. Esse processo envolveu a realização de passeios virtuais, guiados pelos representantes dos povos indígenas, através de imagens aéreas e mapas-base impressos e enviados a eles, apontando questões próprias relativas ao construir e ao habitar indígena — tipologias de construção, lugares de importância para os indígenas, a estruturação espacial das terras, aldeias e núcleos familiares, a relação com o território natural —, sendo o material resultante transformado posteriormente em produto gráfico.

Finalmente, depois de todas as dinâmicas envolvendo nossos colaboradores, iniciamos o processo de tratamento final das imagens do acervo envolvidas nas interlocuções. Como produtos para o site, intencionamos “brincar” com algumas das imagens, isto é, fazer pequenas inserções que destacassem elementos cuja distinção não é imediata e que foram identificados a partir dos relatos. Um exemplo diss foi o uso de máscaras de cor, cada uma das imagens foi editada de modo a potencializar os contrastes, por exemplo, entre construção e contexto — identificando elementos construídos em meio à mata ou entre o habitar e o habitat —, e salientando e identificando os indígenas que figuram nestes registros.


equipe

Somos uma equipe composta por arquitetos e antropólogos interessados nas discussões sobre as construções e as formas de habitar indígenas. Nos enxergamos como mediadores de um encontro histórico e necessário, entre acervos etnográficos e sujeitos indígenas, e, de quebra, fomentamos um assunto pouco discutido, que importa para os sujeitos das memórias e para os pesquisadores e agitadores dessa iniciativa.

Somos Daniela Moro, Florêncio Rekayg Fernandes, Gabriel Tomich, Ingrid Schmaedecke, Marina Oba, Otto Braz, Leon Reinstein, Sabrina Talita Szulek, e os membros do Museu Paranaense Brunno Douat e Josiéli Spenassatto. Tivemos o prazer de realizar este projeto, selecionado na área de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, na categoria Inventário Preliminar de Bem Imaterial Geral, vinculado ao Programa de Apoio e Incentivo à Cultura do Fundo Municipal de Curitiba.

Gostaríamos de agradecer a todos e todas que participaram do cerne deste projeto: Antônio Sora Felipe, Claudemir da Silva Xetá, Dival da Silva Xetá, Elias Fernandes Cordeiro e Judite Fygso Fernandes. Somos gratos a todo o povo Kaingáng, a todo o povo Xetá e a todo o povo Guarani do estado do Paraná.

Também ressaltamos aqueles e aquelas que atuaram no projeto de outras formas, como Ana Ozaki, Camila de Andrade, Christiana Vieira, Fabiane Lima Ferreira, Gabriela Gonçalves, Lucas Douglas de Barros Felix, Julia Brasil, Radmyla Nunes, Thiago Benucci e professores Xetá da Terra Indígena São Jerônimo.

E àqueles e àquelas que são queridos por todos nós e que fortaleceram nossos ânimos no percurso de realização deste projeto, nosso muito obrigado(a): Bernardo Stumpf Rodrigues, Ayla Krig Si Wollinger Fernandes, Duane Kógre Wollinger Fernandes, Kayru No Sá Wollinger Fernandes e Fabieli Wollinger de Almeida Fernandes.